Internacional

Fome em Gaza. Das fotos tomadas por mentira ao vídeo tomado por verdade

Alegação: imagens da fome em Gaza são do Iémen e criança palestina está tão fraca que já nem chora

 

Durante a última semana, as redes e os media encheram-se de imagens dramáticas sobre a fome e a desnutrição extrema na Faixa de Gaza, sobretudo com fotos e vídeos de crianças emaciadas e esfomeadas, e pais desesperados e exauridos.

Na quinta-feira, o jornal francês Libération fez capa com a foto de uma criança palestiniana claramente subnutrida (https://archive.is/wx8Pz) e rapidamente foi acusado, na rede social X, de estar a usar uma foto de arquivo de setembro de 2016, alegadamente do Iémen (https://archive.ph/sfFE4), crítica entretanto amplificada por contas da comunidade judaica francesa (https://archive.is/VuIGV).

Essa acusação repetiu-se noutra foto da mesma criança, desta feita ao colo do pai, que chegou a ser considerada uma “mentira repetida acriticamente pelos media e por ‘crentes'” nesta publicação da analista de assuntos internacionais, Helena Ferro Gouveia, no X, onde também alega que a foto é de 2016, no Iémen: https://archive.ph/hZ1Eo.

Na mesma data e no dia seguinte, sexta-feira, jornais como o The Guardian (https://archive.ph/wuglw), o Le Monde (https://archive.ph/REdDK) ou o Correio da Manhã (https://archive.is/EuUww), entre outros, escolheram outra foto impactante para as suas primeira páginas, com uma mãe a segurar uma criança esquelética vestida apenas com o que parece ser uma fralda improvisada com um saco de plástico preto.

Essa imagem já tinha sido partilhada na véspera por vários media, como a BBC (https://archive.is/ZtHxJ) e a CNN (https://archive.is/kvTRR), que afirmaram tratar-se de Muhammad Zakariya Ayyoub al-Matouq, uma criança palestiniana de um ano e meio que pesa apenas seis quilos devido a problemas de saúde e a subnutrição.

No entanto, várias contas nacionais e internacionais em redes sociais como o X também atribuíram a foto ao conflito no Iémen, sem apresentar qualquer prova (exemplos: https://archive.ph/r7UGYhttps://archive.ph/mBSy9 e https://archive.ph/A4EVe).

Neste período, circulou também um vídeo que, alegadamente, mostrava um bebé palestiniano demasiado fraco para chorar devido à fome, imagens que obtiveram centenas de milhares de visualizações nas redes sociais (exemplos: https://archive.ph/ds7A4 e https://archive.ph/T5LfS) e que chegaram a ser divulgadas por canais palestinianos.

Factos: as três fotos são reais e de Gaza, mas o vídeo é de uma criança do Paquistão

A origem da foto utilizada na capa do Libération já foi esclarecida pela equipa de verificação de factos do jornal, que demonstra tratar-se realmente de uma criança em Gaza: https://archive.is/hvFNS.

Esse facto é facilmente comprovável através de pesquisas reversas que permitem identificar a reportagem que o fotógrafo Omar Al-Qattaa, da agência AFP, fez no campo de refugiados de Al-Shati, em Gaza, a 23 de Julho (https://archive.ph/ifY1T), incluindo aquela imagem de Yazan, de apenas dois anos: https://archive.is/ldINf.

O mesmo tipo de pesquisa reversa também permite constatar que a foto que a comentadora Helena Ferro Gouveia diz ser do Iémen – aparentemente com base numa resposta errada do Grok, o assistente de inteligência artificial do X – é na verdade do pequeno Yazan, de Al-Shati, Gaza, e foi captada uns dias antes por Ahmed Jihad Ibrahim Al-arini, da agência turca Anadolu (https://archive.ph/ocStQ), fotógrafo que também fez uma extensa reportagem com aquela família de Gaza: https://archive.ph/TEX5n.

Este erro do Grok já tinha sido registado pela equipa do Libération e apontado pela utilizadora Ana António que, em várias tentativas infrutíferas, demonstrou à IA do X que estava errada, não só porque existem outras fotos da mesma família de Gaza, mas também porque a alegada origem indicada pelo Grok é claramente de outra criança (ver sequências https://archive.ph/idR0W e https://archive.is/w5Rbl). Curiosamente, houve outro utilizador francês que conseguiu que o Grok assumisse o erro: https://archive.is/k7E8C.

O mesmo fotógrafo da Anadolu é também o autor de outra foto emblemática, a de Muhammad al-Matouq, que também está a ser alvo de desinformação. À semelhança das anteriores, basta uma pesquisa reversa seguida por pesquisas nas páginas da agência ou em bancos de imagens como o Getty Images para chegar à reportagem (https://archive.ph/qAVzA) sobre essa outra família de Gaza destacada nas capas de jornais nacionais e internacionais e cuja história foi contada por diversos media, como a BBC, que explica que a criança já tinha problemas de saúde anteriores à subnutrição: https://archive.ph/vaTnY.

Quanto ao vídeo da criança com convulsões, uma leitura atenta dos comentários de alguns dos tweets permitiu identificar alertas para o facto de o vídeo poder não estar relacionado com Gaza, nomeadamente por surgir numa página dedicada a crianças em tratamento numa Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais (UCIN) que parece estar ligada ao Paquistão: https://archive.is/IChXu.

A Lusa Verifica encontrou o mesmo vídeo em contas associadas no Instagram (https://archive.ph/wh008) e no Tiktok (https://ghostarchive.org/archive/CHko2), nas quais, em várias respostas, os autores dizem tratar-se de uma criança paquistanesa de nome Abubakar e não fazem qualquer referência a Gaza.

Pesquisas adicionais permitiram confirmar essa identidade bem como a UCIN onde a criança está a ser tratada no Paquistão, no Hospital Infantil de Timergara, onde a equipa tem partilhado o caso e atualizações diárias no Facebook (https://archive.is/DXEFT) e no Youtube: https://archive.ph/Wjdw2.

Acresce que num dos vídeos partilhados na página de Youtube de um dos médicos é possível encontrar o mesmo local e os mesmos equipamentos que surgem no vídeo que está a ser falsamente atribuído a uma criança de Gaza: https://archive.is/CHdsh.

Contraditório

A Lusa Verifica conseguiu contactar esse pediatra, Ilyas Khan, que assegura que “a alegação de que o vídeo mostra uma criança de Gaza é incorreta e não reflete os factos”, dado que “aquela criança está atualmente internada na unidade de cuidados intensivos neonatais de um hospital no Paquistão”, informação também confirmada pela conta oficial de e-mail da unidade de saúde.

A página do Facebook que divulgou o vídeo também confirmou à Lusa que o bebé “não é de Gaza, é do Paquistão, chama-se Abubakar” e está a ser tratado naquela UCIN paquistanesa devido a vários “problemas de saúde agravados pela ignorância dos pais”.

Por seu lado, a analista Helena Ferro Gouveia respondeu que reproduziu informação de “um post de um jornalista alemão do jornal Bild” e que “a informação também foi validada pelo Grok.” No entanto, não forneceu qualquer link, mas admite que o jornalista “pode ter-se enganado”. “A acreditar no que vemos diariamente de mentira e manipulação na imprensa portuguesa e no viés anti-semita admito que sim, que possa ter havido um erro da minha fonte primária.”

Na respostas escritas enviadas à Lusa Verifica, a analista recomenda um artigo de David Collier sobre a foto de Muhammad al-Matouq ao colo da mãe, que o jornalista inglês diz não ser a face da fome, mas “o rosto de uma criança clinicamente vulnerável cuja situação trágica foi raptada e transformada em arma”: https://archive.ph/3MVFr e https://archive.ph/c4RwR.

Helena Ferro Gouveia sugere ainda que se “investigue o fotógrafo” porque “tem jihad no nome, o que é bastante sugestivo no contexto do Médio Oriente, trabalha para a agência turca Anadolu e a Turquia (…) é inimiga de Israel e tudo fará para alimentar o ódio a Israel.”

Avaliação Lusa Verifica: Falso

Os alertas para a crise humanitária em Gaza, incluindo para a “fome generalizada”, são reais e têm sido repetidos diariamente por dezenas de ONG e instituições internacionais (https://archive.ph/bePw5), incluindo pelas Nações Unidas (https://archive.ph/S2REC), mas circulam diversas imagens e narrativas falsas.

Há imagens verdadeiras de crianças doentes e subnutridas que são consideradas falsas por contas pró-Israel e vídeos não relacionados que são difundidos como verdadeiros por contas pró-Palestina, num cenário de desinformação e de utilizadores eventualmente bem intencionados que se deixam enganar por inteligências artificiais pouco credíveis e não gastam uns minutos a verificar, através de pesquisas reversas, antes de partilharem conteúdos enganadores.

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