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Nos 50 anos da democracia, Vale dos Caídos continua a ser “viagem a 1975”

As duas expressões são de Emilio Silva, presidente a Associação para a Recuperação da Memória Histórica em Espanha (ARMH): “Entrar na basílica é uma viagem a 1975. Quando passas a porta ninguém mudou nada da narrativa”.

 

Emilio Silva falava com um grupo de jornalistas de meios estrangeiros em Espanha, incluindo a agência Lusa, durante uma visita recente ao Vale dos Caídos, um dos maiores símbolos da ditadura franquista e onde estão mais de 33.800 mil corpos de pessoas mortas, essencialmente, durante a guerra civil espanhola (1936-1939).

Mais de 12 mil desses corpos estão por identificar, a par de outros milhares que permanecem desaparecidos e em valas comuns, com Espanha a continuar a ser o segundo país do mundo com mais desaparecidos, a seguir ao Camboja.

Milhares de cadáveres, sobretudo de combatentes do lado republicano, contra as tropas de Franco, foram levados para o local contra a vontade e sem conhecimento das famílias.

As primeiras exumações no Vale dos Caídos foram feitas em 2023, em resposta a pedidos de familiares, e o Governo espanhol prevê terminar dentro de três anos e meio as exumações das valas comuns da guerra civil e da ditadura, onde em 2022 havia ainda 114 mil cadáveres, segundo o executivo. Até agora foram identificados e entregues a famílias 29 corpos que estavam no Vale dos Caídos.

Localizado a cerca de 50 quilómetros do centro da cidade de Madrid, o Vale dos Caídos, rebatizado em 2022 Vale de Cuelgamuros, foi construído por presos, sobretudo presos políticos, entre 1951 e 1959, no meio de um parque de 1.365 hectares.

Sob uma cruz de pedra de mais de 150 metros está a basílica e as criptas com os mais de 33 mil corpos.

“A lei diz que hoje é um cemitério civil. Parece um cemitério civil, com a maior cruz da cristandade?”, ironizou Emilio Silva, que realçou que monges beneditinos continuam a viver no recinto, onde também exploram uma hospedaria e têm uma escola.

Quase nada mudou no Vale dos Caídos desde a morte do ditador, em novembro de 1975. Dentro da basília, mantêm-se intactos os símbolos e a narrativa franquista e até os bancos de madeira da igreja continuam a ser os mesmos de sempre, com o escudo que Franco criou para si próprio e para a sua família.

O corpo do ditador esteve enterrado no altar entre 1975 e 2019, quando foi levado para o cemitério municipal de El Pardo, a cerca de 20 quilómetros do centro da cidade de Madrid.

A mudança do túmulo de Franco fez-se ao abrigo da primeira lei de memória histórica aprovada em Espanha, em 2007, mas o resultado acabou por ser a criação de “um altar fascista” no novo local para onde foi levado o corpo, realçou Emilio Silva, no cemitério de El Pardo, ao mesmo grupo de jornalistas.

O corpo do ditador está num jazigo à entrada do cemitério que, pela localização, tamanho e forma se confunde, à primeira vista, com uma igreja. A fachada e o chão em frente estão cobertos de fotografias do ditador, bandeiras franquistas, textos de homenagem a Franco, à ditadura que liderou e ao partido de inspiração fascista Falange Espanhola.

“É um insulto. Há uma lei que diz que isto é ilegal. Porque a aprovaram?”, prosseguiu Emilio Silva, que insistiu em que, para cumprir a lei bastava que algum funcionário retirasse os objetos que exaltam o ditador, a ditadura e o fascismo e que são ali deixados, “num local público mantido com impostos”.

“Num país que tem milhares de pessoas que defenderam a democracia desaparecidas, que não têm uma campa ou permanecem numa vala comum, isto é um insulto. Cinquenta anos de estado democrático foi incapaz de arrancar esta farpa. Isto não acontece com Salazar em Portugal, com Pinochet no Chile ou com o Mussolini na Itália”, insistiu.

Há em Espanha mais de 6.000 “símbolos do franquismo que de forma ilegal continuam a ocupar espaços públicos e privados”, segundo o ‘site’ deberiadesaparecer.com, um mapa interativo que localiza todos esses símbolos e que resulta de um projeto da maior central sindical espanhola, CCOO — Comissiones Obreras, lançado em 2022, coincidindo com a aprovação da segunda lei de memória histórica do país.

Ao abrigo dessa lei, a maioria destes símbolos deveriam ser eliminados e são ilegais. No entanto, permanecem, e sem qualquer informação ou placa de enquadramento, por “falta de vontade política”, na opinião de Emilio Silva.

Um dos desses símbolos é o Arco da Vitória, em Madrid, nas imediações do Palácio da Moncloa, a sede do Governo espanhol, um monumento de 50 metros de altura construído na década de 1950 para celebrar a vitória das tropas franquistas na guerra civil, uma origem e significado que milhares de habitantes de Madrid desconhecem.

“Falta vontade política. Todos os presidentes do Governo têm o Arco da Vitória ao lado desde 1977 e nenhum se incomodou”, sublinhou Emilio Silva, para quem, “no fundo, isto é a política da transição” da ditadura para a democracia em Espanha.

“Contaram-nos que o fascismo e o antifascismo eram reconciliáveis. Essa é a versão da transição, inclusivamente mantida por pessoas da esquerda. Consentir isto faz parte dessa cultura política”, defendeu.

Na semana passada, o Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas saudou “os progressos feitos em Espanha na área da memória, verdade e reparação” com a aprovação da lei de 2022, mas voltou a lamentar que diversos “procedimentos” iniciados nos últimos 15 anos por causa dos crimes contra os direitos humanos durante a ditadura e a guerra “não tenham até agora resultado em qualquer ação efetiva”.

A lei de 2022 estabeleceu, para o Vale dos Caídos, além de um novo nome, um novo estatuto, com o objetivo de transformar o espaço num local de memória histórica.

Para isso, foi lançado este ano, em abril, um “concurso público de ideias”, que inclui a construção de um “centro de interpretação” no Vale de Cuelgamuros. O resultado do concurso deve ser conhecido nas próximas semanas, mas segundo o calendário oficial, só a partir de 2031 estará concluída a reconversão do espaço.

Para já, e como em muitos locais de Espanha com símbolos franquistas, não há qualquer informação no parque ou na basílica sobre a história do Vale dos Caídos. Nem sequer, como realçou Emilio Silva, “um folheto entregue quando os visitantes pagam a entrada” no recinto, ao contrário do que acontece em “qualquer campo concentração na Europa”.

“Quatro placas e dois painéis com informação custam 100 euros. E passaram 50 anos. É muito barato economicamente, mas deve ser muito caro politicamente”, afirmou.

Para Emilio Silva e a associação a que preside, a reconversão do Vale dos Caídos nunca poderá ser feita mantendo os monges beneditinos a viver e a explorar “um negócio” no espaço – o que vai acontecer, na sequência de um acordo alcançado no ano passado entre a Igreja e o Governo espanhol.

Por outro lado, a associação considera “irresponsável e desnecessário” o projeto para o Vale dos Caídos, que envolve “um gasto de dezenas de milhões de euros” e que prevê uma intervenção num espaço isolado, sem acesso por transportes públicos, e a quase uma hora de carro desde Madrid.

Para a associação, aquilo que o Vale dos Caídos deve ter é informações “com uma explicação histórica que interprete os seus elementos arquitetónicos e ornamentais, repletos de propaganda nacional católica fascista”. Além disso, realça que o recinto tem já espaços e edifícios suficientes e disponíveis para instalar uma “exposição permanente”.

A associação critica também a comparação que o Governo espanhol insiste em fazer entre o projeto para o Vale dos Caídos e monumentos como o construído em memória do Holocausto no centro de Berlim.

“O Vale dos Caídos foi construído para humilhar as vítimas da guerra civil. A alguém lhe ocorre um monumento para celebrar um atentado terrorista?”, questionou Emilio Silva.

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