“Ser um bom submarinista não é uma questão de ética ou de honra, é uma questão de sobrevivência”.
As palavras são do Comandante da Esquadrilha de Subsuperfície Baptista Pereira, da Marinha Portuguesa, e traduzem a imensa responsabilidade das equipas escaladas para trabalhar em embarcações submersíveis.
Completam-se esta terça-feira 25 anos do desastre do submarino russo Kursk, um dos mais graves acidentes de sempre com este tipo de embarcação, resultando na morte de 118 pessoas. Pelo menos 23 elementos da guarnição, porém, sobreviveram às duas explosões que afundaram o submarino nuclear de ataque, tendo-se refugiado num dos compartimentos mais à ré, longe da proa, onde estavam os torpedos. A sorte destes homens estava selada desde o início: ninguém os viria salvar a tempo.
“Levaram muito tempo, só ao fim de uma semana é que finalmente perceberam que não tinham condições e é que admitiram que precisavam de apoio. Ao fim de uma semana era muito tarde, incluindo para esse grupo de pessoas que sobreviveram numa fase inicial”, afirma, ao Notícias ao Minuto, o comandante José Miguel Picoito, assessor de estudos no Instituto de Defesa Nacional (IDN).
O gigante de aço da Frota do Norte
O K-141 não era um submarino qualquer, era conhecido como “inafundável” e dizia-se que poderia sustentar um ataque de torpedo. Em operação desde 1994, o Kursk era um ‘gigante’ nuclear da Marinha russa. Com 154 metros de comprimento, mais de 18 metros de largura, tinha um deslocamento total de mais de 23 mil toneladas e era movido por dois reatores nucleares.
Submarino Kursk ancorado em Vidyayevo, em 1995© STR/AFP via Getty Images
Era um dos poucos submarinos autorizados a manter carga de combate em permanência e, sendo da classe Oscar II, estava equipado com 24 mísseis de cruzeiro P-700 Granit e duas dezenas de outras armas, incluindo torpedos. Por essa razão, estava totalmente equipado no 12 de agosto de 2000, mesmo que para um exercício naval – o primeiro exercício naval de larga escala da Marinha russa em 10 anos e o primeiro depois da dissolução da União Soviética.
Pouco antes das 9h da manhã, a tripulação pediu autorização para lançar um torpedo inerte (sem ogiva), normal em exercícios do género. A resposta foi “dobro” (“autorizado”, naquele contexto). Após um atraso considerável, o torpedo foi lançado às 11h29.
Trinta e quatro segundos depois, detetores sísmicos em vários pontos do mundo registaram um evento de magnitude 1,5 na escala de Richter, a 135 quilómetros da costa russa. Às 11h31, uma segunda explosão, mas muito mais violenta: de magnitude 4,2. O Kursk afundou-se até ao leito marinho, a 108 metros de profundidade.
As condições ideais… para um salvamento que não chegou
Um submarino acidentado com posição conhecida é algo raro em acidentes com estas unidades, que costumam estar em alto mar e em profundidades muito maiores. Em teoria, a 135 quilómetros da costa e a 108 metros de profundidade, o resgate seria possível.
“Qualquer operação de busca e salvamento de um objeto debaixo de água é um processo extremamente complexo. São raras as situações de acidentes com submarinos onde o resgate dos passageiros é possível”, indica o comandante Baptista Pereira, acrescentando que é algo que “raramente acontece nos submarinos que operam em águas portuguesas, onde o oceano é muito profundo”.
“Neste caso, se tivesse os meios ou aceitado apoio (…) teria de ser uma coisa rapidíssima a acontecer, porque as pessoas não devem ter sobrevivido durante muito tempo. Realmente, como o fundo era relativamente baixo, sabia-se a posição onde o submarino estava, portanto teria sido viável”, acrescenta o comandante José Miguel Picoito. “Numa tripulação de 118 pessoas ter-se-ia salvado ali é um quinto das pessoas”.
Os relatórios que se foram conhecendo sobre o acidente mostram que a primeira explosão destruiu parte da proa e matou a tripulação dessa secção, incendiando compartimentos adjacentes. A segunda explosão, mais violenta, impactou vários compartimentos e provocou perda de energia e inundação maciça. Matou a maioria da tripulação, menos 23 homens que se refugiaram no compartimento 9, na popa da embarcação submersível.
23 sobreviventes, mas apenas por horas
Embora tenham existido muitas teorias e poucas certezas, o consenso generalizado é que os homens neste compartimento estiveram vivos apenas algumas horas.
As notas encontradas no bolso do uniforme do tenente-chefe Dmitri Kolesnikov mostravam uma entrada às 13h15 de 12 de agosto, cerca de duas horas depois das explosões: “Todos os tripulantes das secções seis, sete e oito mudaram-se para a nona. Estão aqui 23 pessoas. Ninguém consegue sair”. A mensagem deixa claro que o militar sabia da gravidade da situação.
Dmitri Kolesnikov, ao centro, com o pai, Roman, do lado esquerdo e um camarada, não identificado, do lado direito© Wojtek Laski/Getty Images
A investigação russa concluiu que os homens estiveram vivos até à noite do dia 12 ou, no máximo, à madrugada do dia 13. Porém, as investigações de noruegueses e britânicos, que ajudaram no resgate, estimam que a maioria terá morrido entre 6 a 8 horas após as deflagrações e que alguns terão sobrevivido até 10 a 12 horas depois. Um incêndio secundário no compartimento terá provocado a morte por intoxicação antes da asfixia total.
Um duro golpe no símbolo do poder naval russo
Aquele exercício no Mar de Barents era um evento importante para a imagem que Vladimir Putin queria projetar, com apenas alguns meses de mandato e numa Rússia pós-colapso soviético. E o Kursk estava na linha da frente no contexto da imagem de modernização da Marinha – e, por conseguinte, militar – que era suposto passar.
A Marinha russa foi apanhada de surpresa e nem conseguiu perceber, num primeiro momento, a dimensão do desastre. Nas primeiras horas, garantiram à população que se tratava de um “problema técnico” e que estava tudo “sob controlo”, ainda que não houvesse qualquer comunicação com o colosso naval. Entre relatórios ignorados e encolher de ombros perante a prolongada falha de comunicação – porque era uma falha frequente – a Frota do Norte só interrompeu o exercício naval e declarou emergência às 22h30 do mesmo dia, nove horas depois do afundamento. Provavelmente, quando todos os tripulantes já estavam mortos, incluindo os do compartimento 9.
“A direção russa estava a passar por um processo de transição do regime da União Soviética e houve algum desinvestimento durante alguns anos e, em termos de equipamentos de resgate, em situações destas, não estavam nem muito treinados”, reforça José Miguel Picoito.
Perante evidentes dificuldades técnicas, a Rússia recusou qualquer ajuda internacional nos primeiros dias, insistindo no uso dos próprios meios. A comunicação à imprensa e às famílias também era escassa e controlada. O medo de divulgar os segredos da marinha russa (ou a enormidade das falhas técnicas e humanas) foi mais importante durante cinco dias, altura em que foi aceite, finalmente, ajuda externa. Quando os mergulhadores noruegueses e britânicos chegaram ao submersível, já não havia sobreviventes.
A viúva de um dos marinheiros do Kursk entrega uma tarte ao capitão do navio de resgate noruegês Regalia, Stefan Deiberg, perante o olhar do comandante da Frota do Norte, Vyacheslav Popov, em outubro de 2000
© POOL/AFP via Getty Images
O assessor de estudo do IDN sublinhou que Vladimir Putin tinha chegado ao poder há pouco tempo e que fica no terreno das incertezas se “a decisão de não recorrer a meios de países da NATO foi tomada a nível dos decisores militares ou ao nível superior”.
Vladimir Putin, de férias em Sochi, no Mar Negro, só regressou a Moscovo a 15 de agosto. Fez a primeira declaração dois dias depois e, uma semana mais tarde, visitou Vidyaevo, a base naval da Frota do Norte, onde se encontrou com os familiares das vítimas. O encontro foi tenso.
Vladimir Putin deslocou-se à base naval de Vidyayevo, onde estavam as famílias das vítimas, no dia 22 de agosto de 2000© Kremlin.ru
“Nada pode substituir o meu filho”: As famílias, as vítimas vivas
Os familiares das vítimas do acidente terão recebido cerca de 720 mil rublos por vítima (cerca de 25 mil euros, ao câmbio da época). Algumas empresas estatais e personalidades doaram dinheiro, elevando o valor para cerca de 50 a 52 mil euros por vítima (85 a 90 mil euros atualmente).
Algumas famílias receberam benefícios adicionais, como apartamentos, sobretudo aquelas que viviam em zonas militares, como Vidyaevo. Foram atribuídas pensões especiais e benefícios sociais a viúvas e filhos, mas estes apoios foram criticados por alguns familiares como desiguais e difíceis de conseguir.
Hoje em dia, muitos familiares continuam a participar em cerimónias anuais. Outras cortaram laços com a Marinha russa, devido ao sentimento de que a verdade foi ocultada.
Familiares dos militares chegam ao aeroporto de Murmansk, a caminho da base naval de Vidyayevo, onde lhes são mostradas imagens das vítimas© SERGEI CHIRIKOV/AFP via Getty Images
Quinze anos depois do acidente, em 2015, foram feitas várias homenagens em diversos portos e cidades russas ligadas ao desastre. “Passaram quinze anos, mas a dor não desaparece. Nada pode substituir o meu filho”, disse Nadezhda Shalapinina ao jornal militar Krasnaya Zvezda, na altura. O filho, Alexei Nekrasov, de 19 anos, era o membro mais novo na guarnição do Kursk e um dos sobreviventes das explosões.
Familiar presta homenagem, em 2015, junto à campa de Sergei Vitchenko, um dos militares a bordo do Kursk© OLGA MALTSEVA/AFP via Getty Images
Neste mesmo ano, em 2015, foi levada a cabo uma sondagem que concluiu que o sentimento coletivo do país havia mudado: na altura do afundamento, 72% dos russos achava que a Rússia devia ter feito mais, mas, 15 anos depois, esse número baixou para 38%.
Resgatar o monstro de aço – uma tarefa complexa
Só dois anos depois, em 2002, a Rússia concordou com a explicação mais consensual para a explosão acidental dentro do vetor submarino, deixando de lado as teorias sobre colisão com submarinos da NATO ou EUA, ou até minas esquecidas da Segunda Guerra Mundial.
A comissão governamental que investigou o naufrágio concluiu que a causa da primeira explosão foi um torpedo com defeito. Um torpedo inerte, mas com sistema de propulsão ativo verteu peróxido de hidrogénio, um combustível altamente instável. A segunda explosão foi causada pela primeira.
Foi içado do fundo do mar em 2001, numa das complexas operações de salvamento da história naval. Com apoio internacional e a liderança de uma empresa holandesa, optou-se por cortar e deixar no fundo do mar a secção da proa onde estavam os torpedos danificados.
O resto do casco (9 mil toneladas de aço) foi levado para o porto de Roslyakovo, perto de Murmansk, onde foi possível remover os corpos e começar as inspeções.
Um quarto de século depois, o desastre do Kursk continua a ser um exemplo paradigmático dos desafios extremos de um resgate subaquático. A gravidade do acidente a par com a sua mediatização tiveram impacto nas estruturas navais não só da Rússia, mas de todo o mundo, incluindo Portugal.
25 anos depois, o que fica? E se acontecesse na costa portuguesa?
A comunidade naval olha para o Kursk como um caso de estudo das dificuldades e decisões críticas em operações de resgate, e como o tempo, as decisões e o azar podem custar a vida a quem está no mar. Houve aprendizagem e mudança, incluindo na Marinha Portuguesa.
“Após o acidente do Kursk surgiram alterações em termos dos Protocolos NATO relativos ao salvamento. Relativamente ao design é sempre muito difícil dizer algo pois os desenhos e planos das plataformas como os submarinos e seus equipamentos são muito secretas. Em termos dos protocolos de salvamento a NATO criou e desenvolveu um sistema de busca e salvamento internacional com equipamentos e comando centralizado”, diz o comandante Baptista Pereira.
O comandante José Manuel Picoito corrobora e lembra que, até antes dessas alterações, já se treinavam cenários de resgate: “Sei, nomeadamente, que era uma das situações que treinávamos, fizemos mesmo um treino real de submarino nosso, ainda da classe Albacora, para acoplar um minissubmarino de resgate, numa situação que foi feita perto de Inglaterra.”
Ainda assim, sublinha, um cenário na costa portuguesa poderia ter um desfecho bem diferente. “Na nossa costa a situação muda completamente. O submarino afundou numa região em que o fundo máximo era de 120 metros. Nós, aqui, a 5 milhas da saída da barra já temos fundos de 2 mil metros”, explica o comandante, relembrando que se as embarcações em situação de crise “forem para baixo de 600 metros” implodem, tal como aconteceu com o submarino argentino San Juan ou com o mais recente Titan. “Não há salvamento possível.”
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